Confira!

"Durante décadas, milhares de pacientes foram internados à força, sem diagnóstico de doença mental, num enorme hospício na cidade de Barbacena, em Minas Gerais. Ali foram torturados, violentados e mortos sem que ninguém se importasse com seu destino. Eram apenas epilépticos, alcoólatras, homossexuais, prostitutas, meninas grávidas pelos patrões, mulheres confinadas pelos maridos, moças que haviam perdido a virgindade antes do casamento. Ninguém ouvia seus gritos. Jornalistas famosos, nos anos 60 e 70, fizeram reportagens denunciando os maus-tratos. Nenhum deles - como faz agora Daniela Arbex - conseguiu contar a história completa. O que se praticou no Hospício de Barbacena foi um genocídio, com 60 mil mortes. Um holocausto praticado pelo Estado, com a conivência de médicos, funcionários e da população."

Autora: Daniela Arbex
Gênero: Reportagem
Número de páginas: 256
Local e data de publicação: São Paulo, 2013
Editora: Geração Editorial
Onde comprar: Amazon | Livraria da Folha | Saraiva

Uma história que não deve ser esquecida


A primeira vez que ouvi falar deste livro foi em 2014, quando estava no cursinho preparatório para o ENEM. Foi uma recomendação do nosso professor de Filosofia e Sociologia, Renato Henrique. Achei assustador o que ele disse sobre o livro, mas depois esqueci. Ano passado, durante a disciplina Produção de Texto Jornalístico II na faculdade, eu e meus colegas tivemos de ler livros-reportagem para a apresentação de um seminário. Foi quando li Olga. Outro grupo ficou responsável pela leitura de Holocausto Brasileiro, e foi durante a apresentação dessas pessoas que eu fiquei tocada por esse livro. O que meus colegas disseram sobre a leitura me fez chorar e me fez entender que o título dado por Daniela Arbex ao seu trabalho não era um exagero: era a única palavra adequada para descrever uma coisa tão horrível.
Em 2009, a jornalista mineira Daniela Arbex soube da tragédia que aconteceu durante décadas no Hospital Colônia, em Barbacena - MG desde sua fundação em 1903. Ela teve contato com fotografias históricas feitas em 1961 por Luiz Alfredo Ferreira, repórter da revista O Cruzeiro, que haviam sido publicadas em um livro. A partir daí, passou a sentir a necessidade de contar aquela história, e em 2011, sua reportagem começava a ganhar forma. Assim como nos sentimos em relação ao Holocausto praticado contra os judeus durante a Segunda Guerra Mundial, ela tinha o sentimento de que todos precisavam saber o que havia acontecido naquele lugar, para que jamais voltasse a se repetir.
Quem leu o conto/novela O Alienista, de Machado de Assis, deve ter se espantado com a forma como o Dr. Bacamarte internava pessoas em seu sanatório simplesmente por qualquer motivo, inclusive por questões pessoais. Até desafetos políticos e pessoas que o criticavam iam parar em sua clínica, repentinamente consideradas loucas. Talvez Machado não imaginasse que após a sua morte existiria no Brasil um hospício onde pessoas seriam internadas de maneira parecida. O fato é que, no século seguinte, ainda haveria motivos para se criticar a psiquiatria brasileira.
No Hospital Colônia foram internadas pessoas que sequer precisavam de tratamento psiquiátrico. Em documentos resgatados do hospício, consta a ficha de uma paciente cujo único sintoma era a tristeza. Outro interno foi considerado doente mental aos dezesseis anos, quando na verdade era apenas um rapaz tímido. Outra mulher, filha de um agricultor, foi mandada para lá por exigir um salário igual ao dos irmãos homens pelo trabalho na lavoura. Uma garota de apenas 14 anos, violentada pelo patrão, foi internada para esconder a gravidez. Os supostos loucos do Colônia eram pessoas que incomodavam a sociedade, pessoas que ninguém queria por perto. E não havia dificuldades em se internar uma pessoa. Não havia necessidade de consultas, terapias, recomendações médicas; bastava embarcar o "louco" no "trem de doido". Muitos dos internos chegaram ao Colônia transportados como gado nesse trem, vindos de todas as partes do país.
Dentro do maior hospício do Brasil, as pessoas rejeitadas pela sociedade eram abandonadas e sofriam toda espécie de privação e violação de direitos humanos. A falta de higiene do enorme manicômio favorecia a presença de ratos; esgoto corria em meio aos pátios. A comida era escassa, servida apenas duas vezes ao dia. Não havia roupas: muitos dos internos chegavam com a roupa do corpo, e subtraídos dela, recebiam apenas o camisolão azul de brim, insuficiente para proteger os corpos maltratados durante o meses frios da cidade serrana. Não havia leitos: os pacientes dormiam amontoados em montes de palha, onde também faziam suas necessidades. Todos permaneciam ociosos durante todo o dia, exceto na hora da aplicação de choques elétricos e da realização da lobotomia, um método cirúrgico arcaico e violento. Não havia esperança: grande parte das pessoas internadas no Colônia só saiu de lá ao morrer. Os que eram saudáveis acabaram por desenvolver doenças reais devido à crueldade com que eram tratados.
O Colônia foi assunto de outras reportagens antes da investigação minuciosa de Daniela Arbex. A reportagem Sucursal do inferno, escrita por Luiz Alfredo e publicada na revista O Cruzeiro, chamou a atenção de toda a sociedade e alarmou o governo, porém a poeira abaixou e nada foi feito para mudar a situação horrível. O mesmo aconteceu quando Helvécio Ratton produziu o documentário Em Nome da Razão (1979). Vários médicos e psiquiatras tentaram denunciar o que acontecia no hospício e foram ignorados. Alguns sofreram retaliações da classe médica.
Um genocídio é o extermínio proposital de uma comunidade, um grupo, uma raça. Ocorreu um genocídio no Brasil durante todo o século XX, que teve como cúmplices o Estado e a sociedade, pois "O descaso diante da realidade nos transforma em prisioneiros dela. Ao ignorá-la, nos tornamos cúmplices dos crimes que se repetem diariamente diante de nossos olhos." (ARBEX, 2013, pág. 255). Restam menos de 200 sobreviventes de uma barbárie que o Brasil mal sabe que aconteceu. Os que sabem dela não podem esquecê-la.

Imagem compartilhada no meu Instagram durante a leitura.
Visite @lethyd ou @loucuraporleituras e acompanhe!
"Neste livro, Daniela Arbex salvou do esquecimento um capítulo da história do Brasil.
Agora, é preciso lembrar. Porque a história não pode ser esquecida.
Porque o holocausto ainda não acabou."
Trecho do prefácio escrito por Eliane Brum. Página 17

Difícil iniciar a parte crítica dessa resenha depois de uma descrição tão forte que não inclui nem metade do que a reportagem de Daniela Arbex revela. Esse é um livro impactante, para o qual eu me preparei durante meses, depois de me interessar pela leitura. Tive que ler lentamente, intercalando com outra leitura. E é assim que recomendo que outras pessoas também façam. É um livro que gera profunda revolta.
O livro é dividido em quatorze capítulos de tamanhos variáveis, nos quais a reportagem está dividida em diferentes assuntos. Por ser um texto jornalístico, o texto está predominantemente escrito em terceira pessoa, exceto em trechos em que Daniela Arbex fala de sua investigação. Por ter o objetivo de ser compreendida pelo maior número possível de pessoas, a reportagem está escrita em linguagem formal, porém simples. O texto é complementado por uma grande quantidade de fotos: partes do hospital, documentos, fotos pessoais de funcionários, pacientes e médicos, e também fotografias da reportagem de Luiz Alfredo, de 1961. Todas as imagens ajudam a compreender a dimensão do sofrimento das pessoas que passarem pelo lugar.
Muitas pessoas têm a impressão de que jornalistas apenas conhecem as dimensões da "notícia" e a apresentam às pessoas de maneira fria e insensível, com o objetivo único de informar. Isso acontece com frequência, porém não nesta reportagem. O texto é sensível, e muitas vezes se assemelha à literatura. Certos trechos baseados nos depoimentos das pessoas que deram entrevista a Daniela Arbex são escritos como se fossem literatura, e só nos damos conta de que estamos lendo uma reportagem quando são inseridas as citações das fontes.
Holocausto Brasileiro é um livro feito de diversas histórias diferentes, que juntas compõem uma história só, a história do Colônia. Muitas dessas histórias são tristes, é claro. Uma delas é a de Sueli Rezende e Débora Aparecida Soares. Internada no Hospital de Neuropsiquiatria Infantil de Oliveira e depois transferida para o Colônia, Sueli viveu a vida inteira fora do convívio da sociedade. Quando esteve grávida de Débora e nos primeiros dias após o parto, fez de tudo para proteger a filha, da qual foi separada à força. Por mais de vinte anos, Sueli nunca se esqueceu do aniversário da filha. Débora foi adotada por uma das funcionárias da instituição. Anos depois, já adulta, resolveu procurar pela mãe biológica. Não chegou a Barbacena a tempo de conhecê-la, mas lembrou-se de, anos atrás, ter estado frente a frente com ela, sem saber que era sua mãe.
Por outro lado, algumas histórias tiveram final feliz, ou pelo menos representam um pouco de esperança. É o caso de João Bosco, separado da mãe aos três anos de idade, que cresceu no Colônia, em Oliveira e depois na Febem. Aos 45 anos, chefe da banda do Corpo de Bombeiros, João Bosco ganhou o maior presente de aniversário que poderia imaginar: reencontrou-se com a mãe.
Seja pelas histórias tristes e revoltantes, seja pelas histórias felizes, o livro emociona. Senão pelo texto, com certeza pelas imagens.
Os últimos capítulos do livro dizem respeito à luta antimanicomial e às tentativas de reformular e humanizar o tratamento no Colônia e em outros hospícios brasileiros. Muitos médicos se opuseram à forma como os "loucos" eram tratados pelas pessoas "normais". Houve grandes tentativas de modificar a forma como as pessoas com problemas psiquiátricos eram enxergadas. Até mesmo  o filósofo Michel Foucault se envolveu na questão. As coisas começaram a mudar por volta da década de 1980.
A diagramação do livro merece destaque. Pela grande quantidade de fotografias presentes, a edição precisou de um bom trabalho de equilíbrio entre texto e imagens, o que está muito bem feito. A fonte do corpo do texto tem um tamanho grande, o que torna a leitura bastante confortável para quem tem problemas de vista. As fotografias tem ótima qualidade, inclusive as de 1961. As fotos permitem até mesmo a leitura de documentos, como carteiras de trabalho de funcionários do Colônia e fichas de pacientes.
É sem sombra de dúvidas um trabalho jornalístico de grande qualidade. É um livro muito chocante, e afirmo que para lê-lo, é preciso estar preparado. Recomendo a leitura para quem se interesse pelo tema, para quem gosta de ler grandes reportagens e para quem queira saber mais sobre a história da psiquiatria brasileira.
Recomendo também, para fins de complemento, o documentário Em Nome da Razão (1979), de Helvécio Ratton e o filme Nise: O Coração da Loucura (2016).

Avaliação geral:

Onde comprar:

Aspectos positivos: texto com grande qualidade jornalística, contendo depoimentos de grande quantidade de fontes, tanto pessoais quanto documentais; presença de grande quantidade de fotografias, incluindo as da primeira reportagem sobre o Hospital Colônia, que hoje têm mais de 50 anos de existência; boa diagramação.
Não há aspecto negativo a ser destacado.

Por: Lethycia Dias

Esse é o sétimo livro que leio para o desafio Bingo Literário, na categoria "Escrito por mulher".


Deixe um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...

Entre em contato conosco!

Nome

E-mail *

Mensagem *

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...