"Uma tragédia francesa é o relato do drama da cidade francesa de Saint-Amand-Montrond, palco de um confronto tardio entre resistentes e milicianos que reproduz os derradeiros combates entre os exércitos aliados e alemães em 1944. Neste livro, construído e redigido como uma tragédia antiga, Tzvetan Todorov reconstitui om grande riqueza de detalhes um episódio da implacável guerra civil que fez os franceses combaterem a si mesmos. Segundo o autor, estes eventos "não mostram apenas o confronto de identidades abstratas - os "alemães", os "colaboradores", os "resistentes", os "civis" -, mas confrontam os próprios indivíduos uns aos outros, questionando assim sua responsabilidade pessoal." A forma da narrativa e os questionamentos éticos do autor conferem a Uma tragédia francesa um valor emblemático."
Autor: Tzvetan Todorov
Gênero: História
Número de páginas: 270
Local e data de publicação: Rio de Janeiro, 1997
Tradução: Alda Porto
Editora: Record
Uma guerra da qual não se fala
Como falar de um acontecimento histórico que todos parecem ignorar? Você certamente deve ter ouvido falar dos horrores da Segunda Guerra Mundial, mesmo que não goste muito de estudar História. Mas por acaso soube que durante a II Grande Guerra, ocorreu um confronto civil numa cidade do interior da França, a quase 300 quilômetros de Paris? Pois é, eu também não. E nem o autor deste livro conhecia essa História local, até o momento em que leu no jornal a respeito do aniversário de 50 anos de um massacre ocorrido na cidade de Saint-Amand-Montrond. A questão era: ele estava nos arredores da cidade; e além disso, ele viajava com frequência para aquela região da França havia 20 anos, e nunca ouvira falar de tal acontecimento. Sua curiosidade com aquilo foi tão grande, que ele se aprofundou nas pesquisas até encontrar relatos dos Arquivos Nacionais, Arquivos Departamentais, e relatos de habitantes locais acerca do ocorrido.
Uma Tragédia Francesa é o relato da guerra civil que aconteceu no verão de 1944 em Saint-Amand-Montrond, uma cidade de cerca de 10 mil habitantes. Para compreender bem o livro, precisei fazer algumas pesquisas de contextualização. E vou descrever abaixo o que levantei em artigos da Wikipédia:
A França estava ocupada pelos alemães desde 1940, quando houve sua rendição. O chefe de governo da época era o Marechal Pétain, cujo nome é citado várias vezes ao longo do livro através do adjetivo "petainista", designado para aqueles que o apoiavam; ele incentivava que os franceses "colaborassem" com os alemães, o que foi chamado de "Colaboracionismo". Este governo, chamado "França de Vichy" ou "governo fantoche", era na verdade exercido pelos alemães ocupantes. Em oposição a isso, foi criada na mesma época a Resistência Francesa, formada por pessoas que não aceitavam a submissão do Estado francês à Alemanha. Mais tarde, a Milícia Francesa foi criada pelo próprio Estado para coibir a Resistência; era uma organização política e paramilitar, de caráter autoritário, anticomunista, antissemita e fascista, que denominava os resistentes como "terroristas". A França permaneceu ocupada até o ano de 1944. (Ver: Referências Bibliográficas).
É nesse contexto que se desenrolam os acontecimentos reconstituídos neste livro, a partir do momento em que agentes locais da Resistência decidem invadir a cidade de Saint-Amand-Montrond e expulsar os alemães. Tudo o que se segue acontece em como consequência das ações anteriores praticadas tanto pela resistência, quanto pelos milicianos, alemães e pela população civil. A libertação da cidade não acontece de uma hora para a outra, como esperavam os resistentes. Os milicianos revidam de várias formas, abusando de autoridade e violência. O livro é o resultado de relatos de vários habitantes da cidade, resistentes, milicianos e civis, além do que consta em documentos dos Arquivos Departamentais e Arquivos Nacionais. O autor faz as devidas referências bibliográficas, e ao final, republica o relato pessoal de René Sadrin, prefeito de Vichy, que colaborou nas negociações entre milicianos e resistentes e fez o que pôde para manter a segurança da cidade.
"Os eventos ocorridos em Saint-Amand-Montrond, que se repetiram em muitas ouras cidades francesas, servem de pretexto para Tzvetan Todorov construir uma reflexão a respeito da razão pela qual eles foram relativamente apagados da memória local. Uma tragédia francesa é uma prova que a memória coletiva lida mal com as complexidades da História."
O livro é estruturado como uma obra de dramaturgia. No caso, uma tragédia, daí o o título. Vou destacar a seguir o trecho em que Todorov faz essa comparação: "Para mim, em todo caso, alguma outra coisa tornava os acontecimentos de Saint-Amand particularmente impressionantes. Eu não conseguia me livrar do sentimento de que alguém havia concebido e articulado todas aquelas ações, à maneira de um autor de tragédia. [...] era uma tragédia inconteste [...] o mal resultava do próprio bem e parecia inevitável.".
Como um livro de História, Uma tragédia francesa utiliza a linguagem formal, apesar da presença de expressões populares em alguns trechos. A investigação de Todorov foi detalhada o suficiente para que alguém que não conheça muito da França possa compreender o que se conta no livro, e minha necessidade de pesquisar foi pelo fato de estar lendo um livro que seria resenhado. Em vários trechos, ele se utiliza de citações dos relatos originais publicados na época, todos devidamente descritos nas referências do livro. Tais citações são complementos daquilo que ele relata, e até mesmo maneiras de melhor expressar determinados acontecimentos.
A escrita do autor é muito precisa. Ao mesmo tempo em que reconstitui os acontecimentos, ele os analisa do ponto de vista ético e crítico, e em alguns pontos é comicamente irônico. Certos trechos (que tive a necessidade de sublinhar, pois pretendo fazer um vídeo com as melhores citações deste livro) me impressionaram. O sarcasmo do autor deu um tom de leveza e humor em momentos de extrema tensão, o que varia bastante o ritmo da leitura tornando-a muito mais interessante, fazendo-a ir além do seu caráter histórico.
Quanto ao relato de René Sadrin, reproduzido após as referências bibliográficas, é um texo tpessoal, que não possui o mesmo caráter preciso do texto de Todorov. Serve de complemento, visto que descreve em detalhes todo o processo das negociações a respeito dos reféns. Entretanto, não constitui uma narrativa tão rica e precisa quanto a da reconstituição que a precede.
Tzvetan Todorov, búlgaro radicado na França, parece ter recebidos a história insólita de Saint-Amand em suas mãos, quando leu sobre o massacre de cinquenta anos atrás. Se ele não estivesse lá naquela data, se não tivesse lido aquele jornal, se não tivesse buscado com tanto afinco as raízes daquele conflito, nós provavelmente não o conheceríamos. A tragédia de Saint-Amand teria passado despercebida, como tantos outros massacres do século XX que ignoramos até hoje.
Este é um livro complexo, é claro, de leitura difícil, que exige muita atenção. Entretanto, eu o recomendo para todos que gostem de História, todos que sejam curiosos a respeito da Segunda Guerra Mundial (apesar de o livro não abordar a Guerra como um todo), e para todos que tenham se sentido incentivados a partir desta resenha.
Aspectos positivos: boa reconstituição dos fatos; escrita precisa e detalhada; citação de referências bibliográficas; comentários de grande valor ético.
Aspectos negativos: utilização frequente de diversas abreviações para nomes de órgãos da milícia, da resistência e do governo, que podem confundir o leitor.
Referências bibliográficas:
Milícia Francesa. Wikipédia. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Mil%C3%ADcia_Francesa>. Acesso em: 01/12/2015.
Resistência Francesa. Wikipédia. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Mil%C3%ADcia_Francesa>. Acesso em: 01/12/2015.
Colaboracionismo. Wikipédia. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Colaboracionismo>. Acesso em: 01/12/2015.
Philippe Pétain. Wikipédia. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Philippe_P%C3%A9tain>. Acesso em: 01/12/2015.
França de Vichy. Wikipédia. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Fran%C3%A7a_de_Vichy>. Acesso em: 01/12/2015.