ENEM, segundo dia. Linguagens, códigos e suas tecnologias; Matemática e suas tecnologias; e o mais complicado de tudo: Redação. Dá até medo só de pensar, não é mesmo? Quando se fala do ENEM, todos nós já sabemos que a Redação é uma das maiores dificuldades dos candidatos. Entretanto, nem precisamos pensar em um exame de nível nacional para nos lembrarmos de que dificuldades em redação são praticamente uma unanimidade entre estudantes brasileiros. Vamos pensar naquele vestibular que você fez como treineiro. Foi difícil, não foi? Mas vamos pensar em algo menor, algo quase cotidiano. Aquela redação que seu professor ou professora de Português pediu como método de avaliação. Mesmo sendo um simples texto para ajudar a completar a nota do bimestre, você já achava um bicho de sete cabeças, não verdade? E se achava difícil, você provavelmente não gostava.
O texto de hoje no Loucura Por Leituras será sobre isso. Não se trata de uma receita de como escrever a redação perfeita, nem de como tirar a nota máxima na redação do ENEM, porque estou longe de ser uma pessoa qualificada para falar disso. O texto de hoje será uma reflexão sobre por que achamos tão difícil assim escrever um texto dissertativo-argumentativo.
Me lembro muito bem de quando estava no colégio. Desde criança, eu sempre gostei de estudar, e gostava mais ainda de ler e escrever. Passei a minha adolescência inteira frequentando bibliotecas e lendo um livro atrás do outro, o que me ajudava muito. Eu adquiria conhecimentos históricos, melhorava minha interpretação de texto, ampliava meu vocabulário, criava intimidade com a linguagem formal e ia acumulando uma bagagem de conhecimentos curiosos aleatórios e aparentemente sem nenhuma utilidade (como saber, por exemplo, que o poeta Gonçalves Dias morreu sem realizar seu sonho de voltar ao Brasil. Talvez ninguém se importe com isso, mas eu descobri lendo). E todas essas coisas eu aprendia apenas me divertindo!
Não, eu não era aluna de colégio particular, nem nada do tipo. Sempre estudei em escola pública, desde o prézinho, e as vezes encontrava muita dificuldade em manter o meu hábito de leitura, estudando em colégios com bibliotecas mal-tratadas, pequenas e quase nunca visitadas. Talvez a única coisa que eu tinha de diferente da maioria dos meus colegas é que meus pais sempre me incentivaram a estudar e também a ler. Eles não apenas cobravam que eu tirasse notas altas, como também estavam sempre me explicando a importância de me esforçar nos estudos, e quando eu era bem pequena, me ensinaram que estudar era divertido. E essa, provavelmente, foi a coisa mais incrível que aprendi com eles, porque fez uma diferença enorme na minha vida.
Mas voltando ao que importa... Graças a tudo isso, cheguei ao Ensino Médio como uma aluna de destaque. Do tipo que não tira uma nota inferior a 7,0, e que recebe o respeito e consideração dos professores, diretores, coordenadores; do tipo que entrega todos os trabalhos em dia, não importa o que aconteça; do tipo que falta só quando fica doente, e olhe lá; do tipo que todo pai e toda mãe deseja que seu filho ou filha tenha como amiga. Enfim, eu me esforçava muito, e me diferenciava por isso. Um grande exemplo era a hora de escrever redação: enquanto a maioria dos meus colegas resmungavam de insatisfação, eu sorria e pensava "Finalmente vamos fazer uma coisa legal". Fosse qual fosse o tema, eu escrevia, e me saía bem. Para ser sincera, minha única dificuldade era fazer com que todas as minhas ideias coubessem em 30 linhas - número que eu considerava pequeno para escrever uma redação das boas.
Eu ouvia meus colegas reclamando sobre a cobrança dos professores em cima da escrita. Quando cheguamos ao 3º ano e começou a pressão para que estudássemos para o ENEM e os vestibulares, percebi ainda mais essa diferença entre mim e eles. Escrevemos muitas redações ao longo daquele ano, e eu, muito preocupada em melhorar meu desempenho para tirar uma nota bem alta no exame que decidiria minha vida durante o ano seguinte, dava o meu melhor. Infelizmente, nem todos da turma conseguiam fazer igual, e a maioria das notas ficava entre 6,0 e 7,0, e eles se contentavam com isso.
Certa vez perguntei a um amigo (um desses alunos que tinham grande dificuldade) por que era tão difícil pra ele. Eu estava acostumada a gostar do que fazia, e para mim era a coisa mais natural do mundo me destacar e escrever bem. Eu simplesmente não conseguia entender por que não era fácil para todo mundo. Então ele me disse algo mais ou menos assim: "Eu não sei como começar. Eu entendo o tema, penso sobre ele, crio a minha opinião, mas não sei nem como começar a escrever". Não é que ele tivesse dúvidas sobre ortografia, pontuação, acentuação ou coisas do tipo. Ele cometia alguns erros de vez em quando, mas nada muito absurdo. E pelo que os professores diziam, a situação era semelhante com quase todos. Ideias confusas, lacunas de pensamento, problemas para conectar um argumento ao outro. Entretanto, isso ainda não fazia sentido na minha cabeça, e terminei o Ensino Médio sem compreender o mistério que era a dificuldade para escrever.
Na faculdade, tive que ler alguns textos de Koch & Elias, e de Othon Garcia, respeitados autores quando o assunto é técnicas de escrita. Não cheguei a ler livros inteiros, mas li pequenos trechos que serviam de objetos de estudo na disciplina Português - Redação e Expressão I. Um desses textos, o capítulo Eficácia do livro Comunicação em prosa moderna: aprenda a escrever aprendendo a pensar, foi capaz de esclarecer o mistério que me acompanhou durante toda a vida estudantil. Farei a seguir uma citação, para vejam as coisas da mesma forma que eu.
1.1. Aprender a escrever é aprender a pensar
Aprender a escrever é, em grande parte, se não principalmente, aprender a pensar, aprender a encontrar idéias e concatená-las, pois, assim como não é possível dar o que não se tem, não se pode transmitir o que a mente não criou ou não aprovisionou. Quando os professores nos limitamos a dar aos alunos temas para redação sem lhes sugerirmos roteiros ou rumos para fontes de idéias, sem, por assim dizer, lhes "fertilizarmos" a mente, o resultado é quase sempre desanimador: um aglomerado de frases desconexas, mal redigidas, mal estruturadas, um acúmulo de palavras que se atropelam sem sentido e sem propósito; frases em que procuram fundir idéias que não tinham, ou que foram mal pensadas ou mal digeridas. Não podiam dar o que não tinham, mesmo que dispusessem de palavras-palavras, quer dizer, palavras de dicionário, e de noções razoáveis sobre a estrutura da frase. É que palavras não criam idéias; estas, se existem, é que, forçosamente, acabam corporificando-se naquelas, desde que se aprenda como concatená-las, fundindo-as em moldes frasais adequados. Quando o estudante tem algo a dizer, porque pensou, e pensou com clareza, sua expressão é geralmente satisfatória.
Todos reconhecemos que ser ilusão supor - como já dissemos - que se está apto a escrever quando se conhecem as regras gramaticais e suas exceções. Há evidentemente um mínimo de gramática indispensável (grafia, pontuação, um pouco de morfologia e um pouco de sintaxe), mínimo suficiente para permitir que o estudante adquira certos hábitos de estruturação de frases modestas mas claras, coerentes, objetivas. A experiência nos ensina que as falhas mais graves das redações dos nossos colegiais resultam menos das incorreções gramaticais do que da falta de idéias ou da sua má concatenação. Escreve realmente mal o estudante que não têm o que dizer porque não aprendeu a pôr em ordem seu pensamento, e porque não tem o que dizer, não lhe bastam as regrinhas gramaticais, nem mesmo o melhor vocabulário de que possa dispor. Portanto, é preciso fornecer-lhe os meios de disciplinar o raciocínio, de estimular-lhe o espírito de observação dos fatos e ensiná-lo a criar ou aprovisionar idéias: ensinar, enfim, a pensar.*
GARCIA, Othon M. Eficácia, em: Comunicação em prosa moderna: aprenda a escrever, aprendendo a pensar. Página 301. 23ª Edição. [São Paulo]. Editora FGV. Sem data. Grifo nosso.
Então, como diz Othon Garcia, principalmente nas partes sublinhadas, o problema não é a falta de domínio das regras básicas, mas sim a dificuldade em conectar as ideias, dar sentido aos pensamentos. Depois de ler isso, eu finalmente entendi o que meu amigo queria dizer quando falou que não sabia começar uma redação, e acredito que esse seja um problema geral, quase unânime. Isso quer dizer que quem tem problemas para escrever não está se preocupando com usar o M antes de P e B; nem em como separar sílabas corretamente, ou como conjugar os verbos em todos os tempos e modos; em qual vogal fica o acento, e se ele é circunflexo ou agudo. Pelo visto, parece que a maioria das pessoas tem uma boa noção de como obedecer a todas as regras desse tipo. O problema mesmo, que deixa tantos preocupados, é: o que escrever.
Voltando ainda às minhas memórias do Ensino Médio, me lembro de que as melhores redações eram aquelas em que o professor ou professora, ao invés de apenas escolher um tema e simplesmente pedir que escrevêssemos, entrega vários textos opinativos ou informativos sobre o assunto escolhido, para que ficasse mais fácil. É isso que Othon Garcia chama de "fertilizar" a mente dos alunos. Não que a culpa seja toda dos professores, porque tenho certeza de que tanto na rede pública quanto na rede particular, existem profissionais ruins e também profissionais excelentes. Esses últimos se esforçam pelo bem de seus alunos, e formam pessoas conscientes e bem-informadas. Portanto, não vamos culpar pessoas; não vamos dizer que alguém é responsável por todo o problema.
Enfim, é isso. Chegamos ao ponto chave da questão, e cumprimos o objetivo do texto. Talvez eu faça em breve outros textos sobre o mesmo assunto, explicando como organizar bem os pensamentos para escrever uma redação bacana, ou qualquer espécie de texto, mas hoje ficamos por aqui.
Por: Lethycia Dias
*O trecho citado é anterior ao Acordo Ortográfico de 2009. Mantivemos a grafia original.
Referências Bibliográficas:
GARCIA, Othon M. Eficácia, em: Comunicação em prosa moderna: aprenda a escrever, aprendendo a pensar. Página 301. 23ª Edição. [São Paulo]. Editora FGV. Sem data. Grifo nosso.
Eu sempre li muito, sempre amei escrever. Minhas redações no colégio e no cursinho sempre recebiam boas notas. Mas acho que os corretores dos vestibulares não compactuam com isso... Nunca fui bem numa redação de Enem, só fui incrivelmente bem uma unica vez, na Unifesp. Eu realmente não sei mais o que fazer para tentar melhorar minha situação. Eu vou tentar melhorar um pouco pelo o que você falou, pensando mais nas frases...
ResponderExcluirBeijos, obrigada pelas dicas! Você escreve muito bem!
Minha intenção com o post é simplesmente ajudar as pessoas, e eu espero mesmo conseguir ajudá-la, Lívia. Obrigada pela visita, pelos elogios e pelos comentários que você tem deixado nos posts do blog. Beijos,e até mais!
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