Confira!

"Cinzas do Norte, terceiro romance de Milton Hatoum, é o relato de uma longa revolta e do esforço de compreendê-la. A revolta cabe a Raimundo, rebento raivoso de uma família cindida ao meio cuja vocação artística colide com os planos do pai; a tentativa de compreensão recai sobre Olavo, órfão industrioso que sobe na vida - se esse é o termo - à sombra imperial de Trajano Mattoso, pai de Mundo, comerciante rico, amigo de militares. O centro simbólico do livro não está, contudo, na Manaus de pós-guerra que vive os últimos dias da boa-vida extrativista e onde boa parte da ação se dá, mas rio abaixo, em Vila Amazônia, palacete junto a Parintins, sede de uma plantação de juta e pesadelo máximo de Mundo. Em sua luta renhida por escapar às ambições dinásticas do pai, Mundo distancia-se o quanto pode desse ponto-morto do romance, puxando o fio do enredo para o Rio de Janeiro, a Berlim e a Londres efervescentes da década de 1970. Advogado medíocre na cidade natal que o regime militar precipita em destruição vertiginosa, Lavo acompanha à distância os passos do amigo, recolhendo os reflexos do baile - para citar outro romance sobre os mesmos anos - que o "primo" artista lhe manda. O empenho de Lavo, depositário atônito de segredos alheios, redobra no plano da narrativa a tensão que o amigo provoca no âmbito do enredo. Mas nem todo o seu zelo bastaria para dar conta desse destino trágico: a seu próprio relato vêm se somar uma carta de seu tio Ran a Mundo e uma outra, que este último lhe deixa como legado. Cruzando-se ou desencontrando-se, as várias versões da história compõem um retrato estilhaçado tanto da vida familiar - em que o sangue e o afeto não falam a mesma língua - como da vida pública brasileira na era da opressão obtusa e da revolta sem corpo. Com Cinzas do Norte, Hatoum expande e aprofunda seu projeto ficcional, levando a sério e a cabo a injunção flaubertiana de escrever a 'história moral de sua geração'. O resultado é este belo romance, amargo e maduro."
Por: Samuel Titan Jr.

Autor: Milton Hatoum
Gênero: Literatura brasileira
Número de páginas: 311
Local e data de publicação: São Paulo, 2005
Editora: Companhia das Letras

O ódio que fala mais alto


Foi com grande alegria que peguei o meu exemplar de Cinzas do Norte após sortear o título no potinho da TBR, pois finalmente poderia reler essa história incrível depois de mais ou menos três anos. A primeira vez que li o livro foi durante a minha maravilhosa fase de explorar a biblioteca da escola durante o Ensino Médio. Eu quase sempre me surpreendia, mas esse foi um dos livros que mais me marcaram na época.
Neste romance de Milton Hatoum, a história de Raimundo Mattoso e das pessoas mais próximas a ele é recontada por seu melhor amigo, Olavo, que busca compreender todo o passado de pessoas entregues à própria miséria. Mundo é apresentado a nós como um rapaz lutando para manter vivo seu sonho de se tornar artista, e faz isso com um comportamento insolente e rebelde, revoltado contra o próprio pai e a vida que este tenta lhe impor desde a infância. O pai, Trajano Mattoso, vê o filho como o herdeiro de seu império de exportação de juta, e para o herdeiro de um latifúndio em plena floresta amazônica, o destino de artista não é aceitável. Um herdeiro precisa entender sobre taxas de exportação e preço do dólar; precisa ter amigos influentes na cidade; precisa se relacionar com membros da alta sociedade de Manaus. Por outro lado, também há Alícia, a mulher que parece odiar o próprio marido, suportando-o apenas para manter o conforto e o futuro do filho. Também existe a figura enigmática do artista Arana, mentor de Mundo, de caráter duvidoso.
Olavo busca as memórias mais profundas de sua juventude para recontar o destino trágico de Mundo, Jano e Alícia, que é ao mesmo tempo o destino trágico das famílias exploradas pela família Mattoso na plantação de juta; o destino do subúrbio de Manaus, cada vez mais deixado à própria sorte; o destino da Floresta Amazônica, recortada aos poucos pela ambição de homens cruéis.
Embora não haja marcações de tempo muito precisas, a maior parte da história acontece ao longo dos anos 1960 e 1970. Mesmo longe do centro político do país, os abusos da Ditadura Militar são retratados como parte da construção dos conflitos: Trajano é amigo de militares, e uma de suas imposições autoritárias é que Mundo estude no Colégio Militar - algo que vai contra todas as convicções de Mundo. O próprio leitor, com o passar do tempo, enxerga Jano como um grande coronel, sentindo-se no direito de ordenar sobre as vidas de todos.
Junto a tudo isso, ainda há o grande bônus: o prazer de poder conhecer, ao menos um pouco, uma parte de nosso país da qual costumamos nos esquecer com frequência.

Foto postada no meu Instagram durante a leitura.
"Uns vinte anos depois, a história de Mundo me vem à memória
com a força de um fogo escondido pela infância e pela juventude."
Página 10.

O início do livro já deixa claro que a história está sendo contada muito tempo depois de ter se desenrolado. Olavo é quem narra todos os acontecimentos, em primeira pessoa, em tempos distintos: os acontecimentos dos quais participou são narrados em ordem cronológica; aqueles que Lavo não testemunhou (e dos quais ele soube por terceiros), são contados à medida em que vão surgindo. Lavo se anula na tentativa de resgatar a história de Mundo, deixando claro que seu amigo, e não ele mesmo, é o protagonista daquela história. São poucos os momentos em que são feitas referências aos pensamentos e sentimentos do próprio Olavo. A narração do melhor amigo é interrompida por uma longa carta, escrita por seu tio Ranulfo para Mundo, contando partes de seu passado com Alícia.
Muito além dos conflitos de uma família que vive de aparências e alguns conhecidos ricos ou pobres, Cinzas do Norte faz o resgate de várias outras questões. Uma das coisas que Mundo mais despreza em Jano é o fato de explorar sem medidas os trabalhadores de sua propriedade rural, que são em sua maioria índios sem acesso a educação, vivendo de maneira extremamente precária. O regime militar não deixa de ser criticado também. O horror da época é personificado na figura do Coronel Aquiles Zanda, amigo pessoal de Trajano, que usa sua influência em nome de interesses pessoais. Outra crítica profunda presente no texto é contra a devastação da Amazônia: as memórias dos personagens mostram as modificações profundas e irreversíveis feitas na floresta.
Além disso tudo, eu acredito que o ponto mais importante do livro seja o fato de nos apresentar um retrato da região mais isolada do país. Na primeira vez em que li Cinzas do Norte, fiquei extremamente surpresa com tudo o que Hatoum nos conta sobre Manaus e outras cidades da região. Sei que isso vai parecer muito elitista (e espero que dizer que eu tinha só dezesseis anos sirva como um pedido de desculpas), mas quando eu pensava na Região Norte do nosso país, eu só conseguia imaginar a Floresta Amazônica que eu via em documentários do Animal Planet sendo substituída por imensas criações de gado. O livro desmistifica a imagem da região, nos mostrando sua cultura, seu povo, e (pasmem!) nos mostrando que é perfeitamente possível a existência de uma cidade em meio à floresta tropical.
A linguagem é fácil de entender; talvez haja certo estranhamento de ver que os personagens se tratam por "tu" ao invés de "você". A carta de Ranulfo a Mundo também pode gerar certa confusão para o leitor, mas não afeta o entendimento de toda a cronologia da história.
Eu recomendo o livro para todos que desejam conhecer melhor a literatura contemporânea brasileira, para aqueles que pretendem conhecer outras partes do nosso país, e para quem gosta de conflitos entre familiares.
Foto postada no meu Instagram durante a leitura.

Aspectos positivos: retrata a cultura e modo de vida na cidade de Manaus e na Região Norte do país; possui boa construção de personagens e boa divisão da estrutura narrativa .
Aspectos negativos: a alternância entre a narrativa de Lavo e a carta de Ranulfo pode confundir o leitor.

Se você gostou das fotos desse post, pode conferir muitas outras no meu Instagram (@lethyd). Atualmente, estou participando do desafio #livregraphie, que propõe um tema diferente para cada dia do mês de maio. Espero que você goste!

Por: Lethycia Dias

3 Comentários

  1. Gostei muito da sua resenha, esse autor é desconhecido para mim, e com certeza estará na minha próxima leitura. Acho importante conhecermos mais sobre nossa própria cultura, e mencionando sobre seu comentário acima, seu pensamento não foi elitista. Não nos é dada a oportunidade de conhecermos mais sobre a cultura nortista. Sim, grande parte do Território do Amazonas é composto pela Floresta, mas como você disse, o ser humano sempre encontra formas de se adaptar. Mas cabe a nós ir além do que nos é oferecido, investigar mais, saber quais são os povos que compõe nossa história. Mas você está de parabéns! Gostei muito da sua descrição da história!

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    Respostas
    1. Olá! Fico muito, muito feliz que tenha gostado e se impressionado tanto! Eu tive certa dificuldade para fazer a resenha, e nessas horas é muito bom poder ver que consegui passar todas as informações importantes e ainda assim deixar meus comentários e incentivar alguém a ler o livro. Tem outro do Milton Hatoum que é bem mais conhecido que esse, se chama "Dois irmãos". Costuma ser muito bem recomendado, e parece que faz o mesmo retrato da região.
      Ainda bem que não pareci preconceituosa quando disse aquilo! Aquela piada que circula pela internet, de dizer que o Acre não existe, ou falar que lá as pessoas ficam sabendo das coisas com meses de atraso, é uma coisa que mostra como nós sabemos pouco sobre outras regiões do nosso país. E é muito bom ver um escritor que decidiu mostrar para os brasileiros o lugar de onde veio.
      Agradeço pela visita e pelo comentário! Seja bem-vinda ao blog! <3

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  2. Seu relato sobre o livro é muito sensível, claro e inteligente. Parabéns pela iniciativa, pois muitos podem se interessar pela leitura a partir do compartilhamento de suas impressões e percepções.

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