Confira!

Resenha: O Pagador de Promessas
"Dias Gomes narra nesta peça de renome internacional o emocionante calvário do simplório Zé-do-Burro: para cumprir promessa feita a Iansan, pela cura de seu burro, ele divide seu sítio com os lavradores pobres e carrega pesada cruz de madeira no percurso de sete léguas, com o objetivo de depositá-la no interior da igreja de Santa Bárbara, em Salvador. Iansan se confunde com Santa Bárbara na visão popular, mas por certo não é um mito cristão, motivo mais que suficiente para que as autoridades eclesiásticas se opusessem à entrada do herói no sagrado recinto. Zé-do-Burro não esmorece. Sua obstinação, sua fé, conduzem a um dos mais emocionantes desfechos do teatro contemporâneo - e universal. O Pagador de Promessas serviu de tema ao filme do mesmo título, ganhador da Palma de Ouro no festival de Cannes em 1962."

Autor: Dias Gomes
Gênero: dramaturgia
Número de páginas: 172
Local e data de publicação: Rio de Janeiro, 1961
Editora: Agir Editorial
Onde comprar: Amazon | Livraria da Folha | Saraiva
*A edição lida é antiga e já esgotada, portanto, os links para compra se referem a edições mais recentes.

Sincrestismo, intolerância e perseguição


No meu tempo de exploração da literatura brasileira por meio da biblioteca da minha escola, me deparei com a minha primeira leitura de uma peça teatral: O Pagador de Promessas, de Dias Gomes. Isso aconteceu no mesmo em que a rede Globo exibia o remake de Saramandaia, novela inspirada em uma obra deste mesmo autor. Eu, que na época tinha disposição pra ficar acordada até pouco mais de meia noite e acompanhava a novela, encontrei o livro e fiquei curiosa em conhecer Dias Gomes.
O Pagador de Promessas é a tragicômica história de Zé-do-Burro, um simplório agricultor baiano. Acompanhado de sua esposa, ele caminha sete léguas (equivalente a 42 quilômetros) desde sua propriedade até Salvador, carregando nas costas uma pesada cruz. O objetivo é pagar uma promessa feita a Iansan, orixá cultuada em religiões afro-brasileiras, como Candomblé e Umbanda. Seu burro de estimação, Nicolau, havia sido gravemente ferido e se curou da noite pro dia depois de Zé ter feito uma promessa em um terreiro de candomblé; e como foi aconselhado a fazer uma grande promessa, para que seu pedido fosse aceito, ele se determinou a levar uma cruz até a igreja de Santa Bárbara, no dia da festa que homenageia a santa.
O motivo de ter feito uma promessa a uma entidade candomblecista e pagá-la num templo católico é explicado pelo sincretismo religioso, que faz com que na cultura popular os orixás africanos sejam associados com alguns dos santos católicos. Assim, Oxossi é São Sebastião, Ogum é São Jorge, Iansan é Santa Bárbara, Oxalá é o próprio Jesus Cristo, e assim por diante. Orixás são entidades representativas de forças da natureza, e cada um tem características próprias, que em alguns casos os tornam parecidos com os santos católicos na devoção popular. Por isso, Zé-do-Burro se considera católico e não vê problema em ter entrado no templo de uma religião não-cristã; e para ele, sua promessa foi feita à própria Santa Bárbara, e ele será castigado impiedosamente caso não a cumpra.
Mas essa associação inocente feita pelas pessoas mais simples não é aceita ou compreendida por todo mundo. Zé-do-Burro encontra o primeiro empecilho para cumprir sua promessa quando a igreja é aberta para a primeira missa do dia. Ele conta toda a triste história de Nicolau e de sua promessa ao padre, que não aceita que ele entre na igreja para depositar sua cruz. Para o padre, fanático religioso, a atitude de Zé é uma verdadeira heresia, a promessa dele foi feita ao diabo, e o fato de ele ter carregado uma cruz é uma tentativa de se igualar a Cristo.
Zé não compreende o que fez de errado, e insiste em permanecer na praça, em frente à igreja, até conseguir cumprir sua promessa. As pessoas que circulam por ali, como comerciantes, fiéis da igreja, um poeta popular, um guarda e até uma roda de capoeira, testemunham seu impasse e vão interferir na tentativa dele de entrar na igreja - seja espalhando a história, ajudando ou atrapalhando. O que parece é que todos querem tirar proveito do martírio dele: Galego, dono de uma venda localizada na praça da igreja, vê que a presença de Zé e sua cruz está chamando atenção e atraindo mais pessoas para seu estabelecimento, por isso não quer que ele saia de lá; Bonitão, um ex-policial que agora explora prostitutas, quer prejudicar Zé-do-Burro para que a esposa dele, Rosa, o abandone; Dedé Cospe Rima, poeta popular, afirma que escrever a história de Zé em versos vai fazer com que o padre seja pressionado pela população, mas ele quer cobrar pela escrita; até mesmo um repórter quer publicar a história de Zé-do-Burro, não para ajudá-lo, mas por interesse na atenção que sua reportagem vai despertar, aumentando as vendas do jornal em que trabalha.
O Pagador de Promessas é uma história extremamente divertida e com um final trágico e emocionante, que esconde um grande protesto político-social, tanto em relação à intolerância religiosa, quanto no que diz respeito à censura e à perseguição política, visto que, por ter dividido sua terra com os pobres, Zé é acusado de apoiar a reforma agrária, e portanto, ser comunista.

Imagem compartilhada no meu Instagram após a leitura.
Visite @lethyd ou @loucuraporleituras e acompanhe!
"Amigo. Já vi que estou cercado de amigos. É amigo por todo o lado...
Cada qual querendo ajudar mais do que o outro"
Fala de Zé-do-Burro, com revolta, ao perceber as intenções de cada um.
Segundo Ato. Página 114


Por ser uma obra de dramaturgia, isto é, uma peça teatral, o texto é formado majoritariamente por diálogos, com algumas indicações sobre o cenário, a emoção que os atores devem expressar nas falas (medo, raiva, constrangimento) e como devem estar vestidos. Ao início e fim de cada ato, há as instruções sobre iluminação e subida e descida de cortinas.
Logo no primeiro ato, nos deparamos com a praça da igreja já em Salvador, de manhã cedo, e Zé-do-Burro e Rosa chegando com a cruz. É só a partir dos diálogos (como é natural no teatro) que rapidamente vamos descobrindo toda a história sobre o ferimento e a milagrosa cura do burro Nicolau, a visita ao terreiro de candomblé e a promessa a Santa Bárbara.
O fato de ser uma peça, composta principalmente por diálogos, torna o texto muito dinâmico e fácil de se ler. Por isso mesmo, minha leitura foi muito rápida: eu pretendia passar uma semana com o livro, e só levei um dia. Os diálogos foram tão bem construídos que mesmo se não houvessem as instruções, seria possível compreender muito bem as intenções e emoções de cada personagem. Nós sabemos que Bonitão é muito malandro e está enganando Zé, sabemos que o padre fica furioso ao descobrir toda a história da promessa, sabemos que o repórter, bastante desonesto, está "colocando palavras na boca" de Zé ao entrevistá-lo.
Embora a peça tenha um caráter bastante cômico, o final é dramático e muito emocionante. Não acrescento mais nada sobre isso, mas afirmo que a transição entre o humor e a dramaticidade é feita aos poucos conforme a trama se desenvolve, e as últimas cenas são bastante adequadas às características dos personagens e à forma como as coisas acontecem.
A crítica à intolerância religiosa está presente em todo o texto, desde o momento em que o padre é apresentado como fanático religioso. Alguns exemplos disso estão nas falas de diversos personagens, comentando o caso: para Zé-do-Burro, não há diferença entre Iansan e Santa Bárbara: "É a mesma coisa" (Pág. 57). Para Galego, que fala uma mistura de Português e Espanhol, "[...] candomblé és candomblé e igreja és igreja." (Pág. 136). E podemos até fazer as nossas próprias reflexões. Zé parece muito mais cristão do que o padre. Ele dividiu o que tinha com os pobres (atitude recomendada por Jesus) e não quer desistir de sua promessa de forma nenhuma, mesmo quando uma autoridade religiosa afirma que vai desobrigá-lo do compromisso, pois acredita que a Santa continua esperando que ele cumpra o que disse. Já o padre é um homem cheio de ego e preconceitos, que fecha as portas da igreja para um homem pobre, sem instrução e cansado; que acredita que "Cambomblé é do demônio", que o burro de Zé é Satanás em carne e osso e que Zé está agindo como executor de um "plano das forças do mal para destruir a Santa Madre Igreja". Tudo isso se apresenta de forma cômica, mas é uma crítica muito séria que não deixa de ser atual. Quantas vezes você já não ouviu falar que outras religiões sem serem a cristã são "do demônio" ou coisa semelhante?
A releitura foi bastante proveitosa. Eu já havia percebido a crítica religiosa na primeira leitura, mas não o contexto político. Essa peça foi escrita no início da década de 1960, época em que o presidente do Brasil, Jânio Quadros (1961), era acusado de ser comunista. Não podemos nos esquecer do que aconteceu anos depois em 1964. Essa crítica é um pouco mais sutil, mas pode ser percebida por um leitor mais atento. O repórter que entrevista Zé, ao saber que ele dividiu suas terras com outros lavradores, conclui que ele é a favor da reforma agrária - um conceito do qual o humilde homem nunca ouviu falar - e isso faz com que até a polícia se envolva no caso.
Acredito que exista até um certo debate sobre a liberdade sexual feminina, embora de forma superficial e um tanto problemática se visto aos olhos de hoje. Rosa, a esposa de Zé, é apresentada como uma mulher insatisfeita sexualmente; fica implícito que ao conhecer Bonitão e se relacionar com ele, ela descobre algo que Zé nunca lhe proporcionou (prazer?), e mesmo sabendo que Bonitão não é um homem decente, quer se aproximar dele. Ela fica dividida entre suas supostas obrigações de esposa e a vontade de se libertar, abandonar o marido e seguir sua vida com outro homem. As atitudes dela têm grande relevância para o desfecho da história, e por isso achei que ela merecia destaque nesta resenha.
A edição que li não tem nada de especial. É muito antiga e está bastante danificada. O texto conserva a ortografia da época, mas não interfere na compreensão. Tenho certeza de que edições mais recentes devem estar atualizadas com o novo acordo ortográfico sem deixar de usar as expressões populares que Dias Gomes incluiu nas falas de seus personagens.
Recomendo o livro para todos pela importância do debate que faz, visto que no Brasil a intolerância religiosa continua causando discriminação, vandalismo em templos religiosos e até mesmo agressões verbais e físicas contra umbandistas, candomblecistas e praticantes de outras religiões não-cristãs hoje em dia.
Como complemento, recomendo a leitura da reportagem Voz das religiões marginalizadas, nas páginas 8 e 9 da edição 2016/2 do Jornal Samambaia, que é produzido por estudantes de Jornalismo da UFG. A reportagem foi escrita por Ana Carolina Petry, e eu fui uma das fontes.

Avaliação geral:

Onde comprar:

Aspectos positivos: propõe o debate sobre a intolerância religiosa, o sincretismo religioso, o que seria a atitude correta de uma pessoa religiosa e a perseguição política; os diálogos são bem construídos nos levando a compreender perfeitamente as emoções que os atores devem passar ao interpretar na peça; a obra é ao mesmo tempo cômica e dramática, mantendo o equilíbrio entre essas duas diferentes "faces" do teatro.
Não há aspecto negativo a ser ressaltado.

Por: Lethycia Dias

2 Comentários

  1. Oi Lethycia, tudo bem?
    Quando eu iniciei a pós precisei assistir esse filme para fazer uma análise, confesso que fiquei bem chocada com o enredo. E creio que o livro deva chocar ainda mais. Ótima dica, ótima resenha!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Acredita que não vi o filme ainda? Eu pretendia ver antes de ter feito a resenha, mas meu tempo era curto e eu preferi postar no dia certinho. Ainda vou assistir.
      O livro é cômico na maior parte do tempo, mas tem um ponto que vai ficando dramático, até chegar no conflito final.

      Excluir

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...

Entre em contato conosco!

Nome

E-mail *

Mensagem *

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...