As imagens acima incomodam, não é mesmo? Livros espalhados, jogados no chão, entregues à sujeira, à umidade, e a outros fatores que podem contribuir para sua destruição. Eu não sei que lugares são esses, onde ficam, e nem por que tantos livros foram deixados assim. Apenas encontrei as imagens no Google, e decidi utilizá-las para falar de algo que me entristece muito: o descaso com os livros, que são objetos de transmissão de conhecimento e cultura, e que muitas vezes acabam sendo desprezados pelas pessoas.
No post de hoje, vou contar uma história ruim porém verdadeira sobre isso.
Quando estava perto de completar meus 15 anos, me mudei com minha mãe, meu irmão e minha tia de Brasília (DF) para Goiânia (GO). O motivo para isso não vem ao caso. Fomos morar em um bairro da periferia, próximo de Trindade, porque foi onde ela conseguiu comprar uma casa com o dinheiro que tinha, pagando tudo de uma vez, sem se endividar com empréstimos. É claro que antes de nos mudarmos, minha mãe tratou de matricular a mim e ao meu irmão nos colégios mais próximos de casa.
Fiz os três anos do meu Ensino Médio num pequeno colégio estadual de bairro, que ficava bem perto de casa, e que por sorte era o melhor da região. Apesar de pequeno, o Colégio Estadual Parque dos Buritis é muito organizado, tem professores competentes, capacitados e criativos, que se preocupam com seus alunos; e pelo menos na época, era gerido por um diretor muito gente boa! Era o tipo de colégio onde os pais querem que seus filhos estudem: onde quase não acontecem brigas; sem pichações nas paredes por dentro e por fora; sem ocorrências de porte de drogas ou violência. Quando algum aluno fazia algo muito errado (e isso acontecia raramente), as duas opções disponíveis eram a) melhorar e se tornar um bom aluno; ou b) ser transferido para outro colégio. Assim, o diretor Roberto mantinha a ordem, e tudo corria muito bem.
Nesse pequeno colégio de apenas 9 salas de aula, onde a maior parte dos alunos se conhecia desde a infância, eu me vi sem amigos no primeiro ano do Ensino Médio. Mas logo descobri a biblioteca. Naquela época, os livros ficavam na sala da coordenação, que era bem pequena, e fica ao lado da secretaria, bem na entrada do colégio. Era uma sala tão pequena, e havia tantos livros ocupando as prateleiras, que eu me perguntava como a coordenadora conseguia respirar lá dentro. Mesmo assim, eu frequentava aquela salinha, sempre pegando emprestados os livros que me interessavam, lendo um, e na hora de devolver, já pegando o próximo. Quando a coordenadora anotava meus empréstimos e devoluções em seu caderno, eu via quais eram os alunos que mais liam. Eram poucos, e quase sempre, os mais jovens.
Quando cheguei ao segundo ano, a biblioteca foi transferida para um cômodo nos fundos do terreno do colégio, próximo aos banheiros e à horta, que era na verdade uma espécie de depósito. A essa altura, eu tinha uma grande amiga, que estava sempre envolvida nas coisas diferentes aconteciam no colégio. Ela tratou de ajudar, e eu também. Foi muito esforço carregando livros para lá e para cá, e depois arrumando todos os volumes em prateleiras de acordo com o gênero. Mas no fim, o resultado foi muito bom: aquele cômodo era muito maior que a sala da coordenação, havia duas janelas, e as prateleiras tinham espaço suficiente para que os livros ficassem organizados. Organizados de uma forma que quando você puxa um, os outros não caem para fora da estante.
Durante aquela organização toda que levou dias, deixou minhas costas doendo e me fez espirrar muito (pois sou alérgica a poeira), eu percebi o quanto a nossa biblioteca da escola era rica: tínhamos enciclopédias, dicionários, livros de orientação para professores, revistas de conteúdo pedagógico e científico, livros de história do Brasil e biografias de homens que fizeram parte da nossa história, arquivos sobre história de Goiás e de Goiânia, livros literários adultos e infantis, clássicos da literatura mundial e brasileira, riquíssimas coletâneas de poesia, contos e crônicas, literatura moderna e contemporânea, livros, infantis, adultos e infanto-juvenis. Naquele espaço improvisado, havia de tudo! Todo um mundo maravilhoso, tudo o que me encantava nos livros!
Aquela minha amiga (que chamaremos de A.) aceitou a proposta do diretor Roberto de olhar a biblioteca durante os intervalos, anotando empréstimos e devoluções. Logo, A. passou a abrir a biblioteca nova todos os dias, e os alunos vinham pela curiosidade. Muitos saíam sem levar livro nenhum, mas alguns eram incentivados por mim e por ela, e acabavam pegando algum volume emprestado. Eu mesma pegava muitos. Às vezes, vários de uma vez, pois se tivesse pego algum que não me agradasse, não precisaria esperar até o outro dia para poder começar a ler outro livro.
Isso durou pouco tempo. Logo, o fato de uma das alunas ser a pessoa responsável pela biblioteca começou a gerar problemas, e o diretor Roberto arranjou outra pessoa responsável por cuidar dos livros.
A nova bibliotecária deixou A. um pouco enciumada, mas isso não me fez perder a vontade de ler. Continuei frequentando a biblioteca, lendo sempre. Mas como A. era uma pessoa muito carismática, era a presença dela que atraía várias pessoas para aquele lugar. Sem ela, as visitas diminuíram muito.
Logo depois, houve uma reforma no colégio. Muitas coisas foram retiradas de algumas salas da gestão, para que os pedreiros pudessem trabalhar nesses locais. E toda a tralha foi levada para onde? Para a biblioteca nova, é claro. Aquele espaço que eu adorava ficou atulhado de coisas, e tornou-se quase impossível a permanência de alguém lá dentro. Ou seja, os empréstimos de livros estavam suspensos. Para minha sorte, pouco antes disso eu havia levado para casa toda a coleção da saga O Tempo e o Vento, obra prima de Erico Veríssimo, numa edição muito antiga da Editora Globo, dividida em sete livros. Eu sabia que ia levar muito tempo para terminar, e esperava que fosse tempo suficiente para que a biblioteca voltasse a funcionar.
Não me lembro agora quanto tempo levou, mas quando a tal reforma terminou, e as coisas foram retiradas do lugar, a biblioteca foi transferida novamente, para outro local. Bem no corredor central do colégio, que ligava os dois blocos de salas, havia uma salinha que ficava sempre fechada, e que antigamente havia sido um banheiro com espaço para três ou quatro sanitários pelo lado de dentro. Durante anos, foi usado como depósito de materiais de limpeza, mas agora tinha sido totalmente adaptado: os sanitários sumiram, as divisórias foram retiradas, um piso novo foi colocado por cima, a pintura renovada, e pronto! A biblioteca foi transferida para lá, apesar de que era um espaço menor do que no segundo local.
Coincidentemente, a nossa bibliotecária foi transferida para outro colégio. Já tínhamos um espaço bonito e novo para os livros, mas não tínhamos mais quem cuidasse deles. Muitos problemas ocorreram quando A. fazia isso, e não queriam deixar que ela assumisse a responsabilidade. Ficamos sem nenhum(a) bibliotecário(a), e a biblioteca novinha em folha permaneceu de porta fechada.
Eu, muito insistente, quase sempre ia lá durante o intervalo. Quando tinha a sorte de encontrar a porta destrancada, entrava rapidamente, com medo de ser descoberta, e fechava a porta de novo. E sorria, olhando as prateleiras cheias de livros que esperavam por mim com seu encanto impresso nas páginas. Já que não havia ninguém responsável por registrar empréstimos e devoluções, eu mesma fazia isso, da minha maneira: entrava, pegava o que queria, e ia embora; depois, devolvia e pegava outro. Fiz isso por muito tempo, e ninguém nunca descobriu. Caso tivessem descoberto e tentado me punir, eu me defenderia. Diria que era uma aluna buscando o prazer da leitura que lhe era negado.
Cheguei ao terceiro ano. A situação continuava a mesma. Uma ou duas vezes, minha professora de Português organizou o varal da leitura, um projeto de incentivo. Diversos livros eram levados para o pátio, onde havia algumas mesas e bancos, e onde muitos alunos gostavam de ficar jogando conversa fora. No intervalo, quem encontrasse todos aqueles livros ali, ficava curioso, via os exemplares, tentava encontrar algum que lhe interessasse. E se quisesse ler, então haveria alguém como o caderno de registros, anotando nome, série, turma, título e data de devolução. A iniciativa era muito boa, mas não funcionava tão bem como deveria: essas pessoas que pegavam os livros emprestados na varal da leitura não sabiam para quem devolvê-los, e acabavam nunca devolvendo nenhum. Por falta de uma informação, perdia-se livros valiosos.
Naquele ano, eu quase não li os livros do colégio. Li muitos livros emprestados por amigos. E esses poucos amigos que conheci ali mesmo, que gostavam de ler como eu, nunca liam os livros da biblioteca. Preferiam ler os livros que eles mesmos compravam. A biblioteca prosseguia de porta fechada (agora sempre trancada), abandonada, esquecida, inutilizada. E nem mesmo quem gostava de ler fazia algo para mudar a situação!
Eu me revoltava com isso: Os professores me elogiavam muito, porque viam que eu sempre estava com um livro nas mãos, e diziam que era raro ver um aluno assim. Mas ninguém abria a porta da biblioteca, para incentivar os outros alunos a ler também. Eu questionava isso para os professores, o diretor, a coordenadora. Ninguém sabia me explicar por que isso acontecia, e o caso era sempre ignorado. Sempre adiado, deixado para depois. Porque importante mesmo é que os alunos tirem notas altas nas avaliações do governo, não é mesmo? E que nenhum deles repita de ano! Era preciso reduzir ao máximo o número de reprovações e desistências. Mal sabiam eles o quanto um livro podia ser benéfico para incentivar o estudo! Ou se sabiam, fingiam ignorar... E todo o conhecimento, as enciclopédias, dicionários, biografias, revistas, coletâneas, romances, todos eles ficavam trancados, inacessíveis. O que eu podia fazer? Era só uma simples aluna, cheia de sonhos e ideias, que tentou muitas vezes melhorar a escola em que estudava, mas que no fim conseguiu fazer pouca coisa.
Terminei o Ensino Médio agradecendo porque nunca mais veria a mair parte dos meus colegas de sala, com quem eu não tinha um bom relacionamento, mas isso é outra história. No último dia em que fui ao colégio, encontrei a biblioteca aberta, e entrei lá. Foi difícil me despedir. Aquele lugar era muito querido para mim, e eu havia sido muito feliz lá dentro, sozinha entre os livros. Quando recebi os vinte exemplares da antologia do concurso Brasília É Uma Festa, na qual tive uma crônica publicada, doei um exemplar para a escola. E agora, tinha de deixar aquele local tão querido, tinha de abandoná-lo a uma administração que não se importava com a leitura. Eu nem sabia se a biblioteca algum dia seria reaberta, e se passaria a ser frequentada por alunos curiosos e ávidos pela leitura. Mas tinha que ir!
Com essa triste história, deixo um alerta para vocês: não permitam que bibliotecas públicas sejam abandonadas, pois os livros que elas contêm - mesmo que não pareçam interessantes para vocês - podem fazer falta para alguém. Se você ainda estuda, visite um pouco a biblioteca do seu colégio, tente gostar do que encontra por lá, e tente mostrar para alguém que aquilo pode ser bom. Anos atrás, eu tinha pouquíssimos livros, e sem as bibliotecas de colégio, eu provavelmente não seria a leitora que sou hoje.
Por: Lethycia Dias