"A rica narrativa de Cicatrizes na Parede se inicia com Enitan, um orgulhoso guerreiro yorubá, sequestrado com a sua família em 1830 nas savanas africanas, vendido como mercadoria no porto de Biafra e embarcado em um navio negreiro para cumprir a sua sina de escravo reprodutor em uma enorme senzala no Brasil, semeando de negros, pardos, mulatos e cafusos os vastos canaviais dos Campos dos Goytacazes, fertilizados com o sofrimento e o suor dos negros escravizados. Uma saga que se desenrola em condições brutais, baseada em pesquisas históricas, fatos reais ficcionados e fatos fictícios que traduzem a dura realidade do preconceito de cor e social até os tempos atuais, mostrando a trajetória dos negros em um caleidoscópio de personagens fortes e passagens marcantes, que levam o leitor a passear como privilegiado voyeur pelos bastidores dos solares, das senzalas, dos prostíbulos, do cárcere, da homossexualidade, da prostituição, da violência, das drogas e da aids, até os elegantes salões da sociedade campista, espelho de um Brasil colonizado com o trabalho e o sacrifício alheio.
Autor: Esdras Pereira
Ilustrações e capa: João de Oliveira
Gênero: Literatura brasileira
Número de páginas: 252
Local e data de publicação: Rio de Janeiro, 2016
Editora: Autografia
Informações adicionais: obra cedida pelo autor.
Um incômodo histórico
Dias após a troca de e-mails com Patricia Fagundes, havia outra mensagem na minha caixa de entrada solicitando uma resenha. E novamente, eu aceitei o desafio. O livro Cicatrizes na Parede é recém-lançado, e a partir da sinopse, eu senti que aguardava por mim uma leitura incrível. Ao iniciar a leitura, comecei a me questionar se não havia criado expectativas demais, até conseguir compreender que a proposta da sinopse estava diluída na obra, dentro de suas possibilidades de narrativa e estilo. Você irá compreender isso ao longo da resenha.
A narrativa de Cicatrizes na Parede nos apresenta a vários personagens em tempos e espaços diferentes, vivendo o processo histórico que como resultado do nosso passado escravocrata, deu origem a diversas mazelas sociais presentes no Brasil até hoje. Minha primeira curiosidade quanto à história foi sobre como tudo isso seria descrito com a presença de Enitan, de sua esposa Nmachi, suas filhas Adany, Folami e seu filho Akin, sequestrados e escravizados. E a minha expectativa seria quebrada, logo no início, quando percebi que o livro não se restringia à história dessa família, que se passa muito rápido para que uma passagem de tempo possa nos trazer outros núcleos de personagens em outras épocas. E embora não pareça, essas histórias não estão desconexas - existe uma ligação entre elas, que se faz por vezes sutil, por vezes bem clara.
Com as passagens de tempo, conhecemos outros personagens, como a jovem as velhas Anita e Marinalva, remanescentes de uma rica família; a agregada Sueli, que representa a sexualização da mulher negra, e o malandro Paulo Caiana, ambos inseridos num contexto de personagens que fazem de tudo para tirar proveito de quem está ao seu redor. Mais tarde, somos apresentados a Nenel, que desde cedo descobre a homossexualidade e que precisa aprender a lidar com um preconceito duplo: por ser negro e por ser gay. Na evolução dessa história, conhecemos ainda a hipocrisia de uma sociedade que tolera o diferente, mas não lhe dá o mesmo espaço destinado a quem segue os padrões. Tudo isso é margeado por uma atmosfera de violência, vingança e exclusão social - em diversos sentidos.
Embora não tenha marcações temporais muito exatas, a história completa nos leva desde a primeira metade do século XIX até o fim do século XX, com personagens que são tudo aquilo que a sociedade quer esconder: a mulher negra, feita de objeto sexual por homens brancos; o preconceito velado das famílias tradicionais; as pessoas cuja sexualidade foge ao padrão heteronormativo, e que por isso recorrem às mais degradantes formas de sobrevivência; e os desejos que algumas pessoas, por hipocrisia, sentem e fazem de tudo para esconder.
"E, assim, Enitan foi semeando os vastos campos dos goytacazes.
Deixando as senzalas dos senhores de engenho repletas de negros fortes e belas negras,
multiplicados em mulatos, cafusos e pardos.
Todos compartilhando uma parcela do seu sofrimento e do seu sangue africano."
Página 32.
Logo no início, me dei conta de que o autor realmente havia feito diversas pesquisas, pois a parte que relata o martírio da família de Enitan nos mostra a diversidade dos povos africanos escravizados. O senso comum nos leva a acreditar a mão de obra escrava era toda formada por um povo só, o que não é verdade. A África era composta por diversos povos com culturas diferentes, e ainda é. Lembre-se de que estamos falando de um continente, hoje em dia composto por mais de 50 países, cujos habitantes falam diferentes idiomas, são devotados a diferentes religiões e possuem vários modos de vida.
Senti um incômodo muito grande durante a leitura, principalmente na história de Sueli, com relação à forma como a sexualidade desses personagens é retratada. O incômodo persiste durante a história de Nenel, porém de maneira amenizada. Então me dei conta de que aquele incômodo era um problema meu, causado pelas minhas preferências. Os personagens deste livro são na maioria pessoas miseráveis, analfabetos, que falam errado, que trapaceiam e tentam "passar a perna" nos outros, que vivem com o pouco que a vida lhes dá, em uma tragédia da exclusão social típica do Brasil. A retratação dos personagens fazia parte da proposta do livro, e a história não faria sentido se não fosse assim. Eu, acostumada a narrativas sofisticadas, com eufemismos e palavras bonitas, precisei me adaptar a isso para poder continuar a leitura sem preconceitos.
Não espere encontrar momentos agradáveis. Cheguei à conclusão de que Cicatrizes na Parede é um livro escrito para incomodar. Para isso, nada mais natural do que uma linguagem que se adapta perfeitamente aos personagens, aos ambientes, ao clima. A linguagem informal, considerada vulgar, faz parte de todo o conjunto. E um leitor que se incomode com isso talvez não seja o leitor certo para este livro.
Apesar das minhas dificuldades de adaptação, consegui encontrar diversos elementos positivos, além do conteúdo essencial do livro. A narrativa, embora na maior parte do tempo não tenha "pena" do leitor e muito menos dos personagens, em alguns momentos é extremamente sensível e poética. Alguns dos momentos mais trágicos dessas histórias conseguem ser belos pela própria tristeza que transmitem. E isso é algo que não se vê em todo lugar.
De toda forma, foi uma leitura bastante positiva, que conversou comigo em diversos aspectos, e me levou a refletir bastante: a minha preocupação social se destina somente aos relatos que leio na internet, ou está voltada também para os meus vizinhos, que eu já chamei muitas vezes de ignorantes? Cicatrizes na Parede foi uma leitura que tocou fundo nas minhas feridas, nas minhas próprias cicatrizes. Para compreendê-la, precisei deixar de apontar os preconceitos alheios, que eu tanto condeno, e me questionar sobre os meus próprios preconceitos (que eu preferia acreditar que não existiam). Com certeza, é um livro que vai exigir releitura, e sobre o qual eu terei outra visão quando estiver mais amadurecida.
De qualquer forma, recomendo para leitores preocupados com a desigualdade social e com os diversos preconceitos existentes na nossa sociedade.
Aspectos positivos: o autor realizou pesquisas históricas antes da escrita, e demonstra isso na ambientação da narrativa; as mazelas sociais que historicamente compõem o Brasil são expostas para o leitor, sem uso de eufemismos; a adaptação dos ambientes e dos personagens condiz com a realidade e retrata muito bem as situações descritas.
Aspectos negativos: as passagens de tempo e a pouca marcação de datas e de tempo histórico podem confundir o leitor.
Avaliação geral:
Por: Lethycia Dias